quarta-feira, 31 de outubro de 2007

Boas memórias

Esta fotografia da velha Sesimbra traz-me tantas memórias de... joelhos esfolados e arranhões! Creio que era por aqui que passávamos a caminho da praia, por causa da velha mania de "cortar caminho". Tantas vezes caí, esfolei joelhos, arranhei-me... enfim, quase que fazia parte de um ritual e eu, como era a mais nova só podia mesmo refilar um bocadinho (e devagarinho) e seguir a fila dos "valentes". Perdia conta às vezes que derrapei, caí, escorreguei e pratiquei uma espécie de desporto muito radical parecido com "sku" mas sem neve e sem qualquer protecção para além do minúsculo fato de banho.
Já nessa altura me doía ver os barcos em terra, abandonados a uma morte lenta...

terça-feira, 30 de outubro de 2007

Procura-se um amigo

Não precisa ser homem, basta ser humano, basta ter sentimentos, basta ter coração. Precisa saber falar e calar, sobretudo saber ouvir. Tem que gostar de poesia, de madrugada, de pássaro, de sol, da lua, do canto, dos ventos e das canções da brisa. Deve ter amor, um grande amor por alguém, ou então sentir falta de não ter esse amor..Deve amar o próximo e respeitar a dor que os passantes levam consigo. Deve guardar segredo sem se sacrificar.Não é preciso que seja de primeira mão, nem é imprescindível que seja de segunda mão. Pode já ter sido enganado, pois todos os amigos são enganados. Não é preciso que seja puro, nem que seja todo impuro, mas não deve ser vulgar. Deve ter um ideal e medo de perdê-lo e, no caso de assim não ser, deve sentir o grande vácuo que isso deixa. Tem que ter ressonâncias humanas, seu principal objetivo deve ser o de amigo. Deve sentir pena das pessoa tristes e compreender o imenso vazio dos solitários.Deve gostar de crianças e lastimar as que não puderam nascer.Procura-se um amigo para gostar dos mesmos gostos, que se comova, quando chamado de amigo. Que saiba conversar de coisas simples, de orvalhos, de grandes chuvas e das recordações de infância. Precisa-se de um amigo para não se enlouquecer, para contar o que se viu de belo e triste durante o dia, dos anseios e das realizações, dos sonhos e da realidade. Deve gostar de ruas desertas, de poças de água e de caminhos molhados, de beira de estrada, de mato depois da chuva, de se deitar no capim.Precisa-se de um amigo que diga que vale a pena viver, não porque a vida é bela, mas porque já se tem um amigo. Precisa-se de um amigo para se parar de chorar. Para não se viver debruçado no passado em busca de memórias perdidas. Que nos bata nos ombros sorrindo ou chorando, mas que nos chame de amigo, para ter-se a consciência de que ainda se vive.

Vinicius de Morais

segunda-feira, 29 de outubro de 2007

(Talvez um) Pensamento

A amizade é uma nascente espontânea de afectos. Por isso não tem preço e pela mesma razão, não se pode cobrar. Mesmo quando o afecto e o apoio são retríbuidos a pontapé. Há quem não tenha noção de certos valores. De facto, há quem não mereça que se use a palavra amigo.
Outros tempos, outras vontades... afinal mudam-se os tempos e o resto muda logo a seguir, para alguns!
Para mim, fica quase tudo igual. Os amigos, os reais militantes continuam a ser... Amigos! Os outros são nuvens vadias... mendigas de afecto que - depois - deixam morrer à chuva!

Só vou gostar de quem gosta de mim

De hoje em diante vou modificar
O meu modo de vida
Naquele instante que você partiu
Destruiu nosso amor
Agora não vou mais chorar
Cansei de esperar, de esperar enfim
E pra começar eu só vou gostar
De quem gosta de mim

Não quero com isso dizer que o amor
Não é bom sentimento
A vida é tão bela quando a gente ama
Tem um amor
Por isso é que eu vou mudar
Não quero ficar
Chorando até o fim
E pra não chorar
Eu só vou gostar de quem gosta de mim

Não vai ser fácil, eu bem sei
Eu já procurei, não encontrei meu bem
A vida é assim, eu falo por mim
Pois eu vivo sem ninguém

(Rossini Pinto)

N.B. Existem pelo menos duas versões, cantadas por Roberto Carlos e Caetano Veloso

No link abaixo, versão cantada por Caetano Veloso
http://www.youtube.com/watch?v=mBS2wD__KEs

quarta-feira, 24 de outubro de 2007

Precoce...

Eu: Vocês querem que eu ria mas onde é que está a graça? O senhor fotógrafo diz "olhó passarinho, minha linda, ri-te"... ora eu não vejo passarinho nenhum e isto não tem graça nenhuma!
(blablablablabla...)
Eu: Está bem, eu hoje faço um ano e vocês querem tirar-me uma fotografia e este senhor fotografo tira fotografias muito bonitas mas para rir, eu tenho que achar graça, não é? E porque é que o pai não vem sentar-se também aqui ao pé de mim? O pai também faz anos hoje!
(blablablablablabla...)
Eu:
E nem pensem vir pentear-me outra vez, porque pentear os caracóis faz doer muito a cabeça. Quando eu for grande e tiver caracóis... não me penteio!
(blablablablablabla...)
Eu: Pois, eu fico muito linda de caracóis e o pai gosta muito. Só não percebo porque é que o pai não deixa crescer o cabelo dele... o pai também tem caracóis. Ah! Mas depois não cabiam debaixo do boné e o senhor patrão do pai também não gostava.
(blablablablablablabla...)
Eu:
Pois é, eu tenho um vestido muito lindo, sapatinhos novos, faço um ano e sentaram-me em cima deste divã e tenho que estar quietinha, olhar para a máquina e rir-me... e isto não tem graça nenhuma! Eu não posso pular nem um bocadinho? Assim, tinha um bocadinho de graça.
(blablablablabla)
Eu:
Já percebi, não posso pular porque tenho que estar quietinha para a fotografia e porque não me posso despentear nem amachucar o vestido. Depois, mais logo, eu e o pai vamos apagar as velas e vamos "partir" o bolo. E hoje, eu não brinco? Assim não tem graça fazer anos!
(blablablabla)
Eu: Se o pai não brinca, é porque não quer!De certeza que a avó, hoje, deixa. Ele também faz anos hoje! Assim, não tem graça nenhuma. Viemos a Sesimbra e nem sequer posso brincar e ainda querem que eu me ria...
(blablablablabla)
Eu: Sabem o que é tinha muita graça, eu ia gostar muito, muito, muito e até ria muito também? Sabem? Sabem? É assim: vamos para casa da avó, vocês vestem-me uma roupa de brincar, uns calçõezinhos e uma blusinha, o pai põe-me às cavalitas e vamos para praia. E depois, na praia, eu vejo os barcos, os pescadores, as gaivotas, o mar e posso brincar na areia, perceberam? E depois acho graça e rio-me muito. E depois, o senhor fotografo vai lá e tira-me fotografias e também aos barcos, e aos pescadores. Porque este senhor fotografo é muito bom a tirar fotografias aos barcos, aos senhores pescadores, ao bairro da avó, às casas de Sesimbra...
(bla,bla,bla,bla,bla)
Eu: Vocês, os "grandes", têm sempre resposta para tudo. Agora é porque está muito frio e não se pode ir à praia. Então, já que sabem tudo, expliquem-me lá.. se está assim tanto frio, como é que os senhores pescadores estão na praia a "empatar" e "desempatar" anzóis e a coser as redes e os outros senhores pescadores foram ao mar e trouxeram peixinhos e os barcos estão na água?
(...)
Eu: Agora não falam porquê? Porque é que não explicam? E porque é que se estão a rir? Eu não acho graça nenhuma!

*** Fotografia tirada nos estúdios Cabecinha (Sesimbra, Outubro, 1963)

terça-feira, 23 de outubro de 2007

domingo, 21 de outubro de 2007

Farol


Todos procuramos um rumo na vida. Na busca do caminho certo, é importante ter um farol... e também um porto de abrigo. E sempre, amigos que esperam por nós.

N.B. Farol do Cabo Espichel - Sesimbra. Foto alojada em http://www.flickr.com (Sr. Ganso)

sábado, 20 de outubro de 2007

Álbum de recordações

Uma música que também marca uma época e um espaço... Passaram-se muitos anos, vinte. A música, as fotografias e os cheiros lembram momentos e sensações que valem tanto a pena. Como tudo o que me lembra esta canção...

Menina dos olhos de água

Menina em teu peito sinto o Tejo
e vontades marinheiras de aproar
menina em teus lábios sinto fontes
de água doce que corre sem parar

menina em teus olhos vejo espelhos
e em teus cabelos nuvens de encantar
e em teu corpo inteiro sinto o feno
rijo e tenro que nem sei explicar

se houver alguém que não goste
não gaste - deixe ficar
que eu só por mim quero-te tanto
que não vai haver menina p'ra sobrar

aprendi nos "Esteiros" com Soeiro
aprendi na "Fanga" com Redol
tenho no rio grande o mundo inteiro
e sinto o mundo inteiro no teu colo

aprendi a amar a madrugada
que desponta em mim quando sorris
és um rio cheio de água levada
e dás rumo à fragata que escolhi

se houver alguém que não goste
não gaste - deixe ficar...
que eu só por mim quero-te tanto
que não vai haver menina p'ra sobrar

(Pedro Barroso)

http://www.pedrobarroso.com/f_poemas_p.htm

http://www.youtube.com/watch?v=UAdJ-JxgamE

Comme il faut...


Ao longe um sol em brasa, ou uma lua abrasadora... ou se calhar o meu coração. Todas as brasas se acalmam no mar... os calores e as paixões também; acalmam mas não se apagam porque existem outras chamas, fogos que ardem também sem doer.
Mais ao perto as luzes; a terra tão perto e a cumplicidade também! As luzes também podem ser sentinelas, testemunhas, cúmplices, ou sinais de vida. Luzes guardiãs da vida e de todas as vidas; pequenos faróis que também sossegam quem está no mar ou (perdido) em terra.
E por esta altura, o mar rosna aos maus que fingem dormir ou que fingem ignorar a rosnadela. Também por esta hora, o mar sussurra mensagens de esperança e amor, aos que acreditam, aos que o respeitam; bons, menos bons e aos que ainda acreditam na bondade.
Quero acreditar que uma das mensagens é para mim! Quero acreditar que o meu sítio está aqui! Neste mar de muitos azuis de esperança, estradas de promessas e de bem, só lhe falta - porque me apetece - gerberas, rosas, margaridas e girassóis... estão todas no meu coração. E este mar de Sesimbra, também!

N.B. Foto alojada em http://www.flickr.com/photos/11742963@N08/1638626753/

quarta-feira, 17 de outubro de 2007

Há dias assim...

Comovi-me de felicidade no dia do teu casamento, voltei a emocionar-me quando os teus filhos nasceram. Senti-me tia, muito tia, nesses momentos. Quando lhes peguei ao colo pela primeira vez, estremeci de ternura. Eram tão pequeninos, tão bonitos e senti-os também um pouco meus. Como já sentia a tua familia um pouco minha. A amizade tem destas coisas... traz-nos presentes, para toda a vida, embrulhados em ternura. É por isso que quando falo dos teus pais, refiro-me sempre ao Pai Santos e à Mãe Santos, os teus irmãos também sempre os senti como os meus mais novos.
Conhecemo-nos há vinte e um anos. Ao longo de todo este tempo, vi-te crescer como ser humano, também como profissional. E tenho um orgulho imenso em ti, até mesmo quando tens mau feitio (nada de mais comparado com o meu). E continuo a gostar muito de ti, apesar de seres do Sporting.
No teu dia especial, é inevitável o desfiar das recordações de todos estes anos de amizade. Das meias tostas de queijo que me obrigaste a comer quando me apetecia uma sandes de presunto ou até uma tosta mista, das partidas que te preguei, de todos os momentos da tua vida que me deixaste partilhar.
Hoje é um bom dia para te parabenizar pelo teu aniversário e particularmente pelo tamanho do teu coração. E para não te arreliar, nem sequer falei aqui daquelas histórias giras nem daqueles nomes fantásticos que gosto tanto de te chamar. Vês? Estou a portar-me tão bem, Paula Cristina!
Feliz aniversário Amiga
Um beijo

Trova do vento que passa


Pergunto ao vento que passa
notícias do meu país
e o vento cala a desgraça
e o vento nada me diz.
E o vento cala a desgraça
e o vento nada me diz.

Mas há sempre uma candeia,
dentro da própria desgraça,
há sempre alguém que semeia
canções no vento que passa.
Há sempre alguém que semeia
canções no vento que passa.

Mesmo na noite mais triste,
em tempo de servidão,
há sempre alguém que resiste,
há sempre alguém que diz não.
Há sempre alguém que resiste,
há sempre alguém que diz não.

(Manuel Alegre/Adriano Correia de Oliveira)


terça-feira, 16 de outubro de 2007

Tanto Mar

Sei que estás em festa, pá
Fico contente
E enquanto estou ausente
Guarda um cravo para mim

(...)

Sei que há léguas a nos separar
Tanto mar, tanto mar
Sei também quanto é preciso, pá
Navegar, navegar

Chico Buarque in (Tanto mar)

quinta-feira, 11 de outubro de 2007

Maus disfarces

A falsa humildade fica tão bem como porcaria de cão na via pública. Mesmo assim, há quem goste de falar de humildade e até dar lições de moral. E se uma das coisas fica mal, as duas soam muito pior. Quem só fala de humildade para o que mais convém não tem moralidade. Quem faz as coisas por bem, prefere ficar no anonimato. Quem quer ter razão à força, às vezes nem assim consegue. Os regimes totalitários caem mais facilmente quando pela força bruta querem ter seguidores. Os ditadores, só o são por terem o apoio de uns quantos seres limitados - e às vezes a raiar todos os patamares da imbecibilidade, - outros que não percebem e nada fazem por isso e ainda os acomodados que receiam perder as cadeirinhas conquistadas pela graxa e pela submissão.
A dignidade é por uns e outros ignorada, banida. Por mais voltas que se dê, dignidade não combina com falsa humildade e falta de moralidade. É por isso que certos ranhosos disfarçados do que mais lhes convém, gostam tanto de enaltecer a humildade e acabam por mostrar a verdadeira dimensão da arrogância. Por acharem que o dinheiro compra tudo, incluindo afectos, respeitabilidade e máscaras para todo o ano. Vão - se safando com a compra das máscaras, que também podem ser de pseudo afecto. Mas os afectos não se compram, não se vendem. E a respeitabilidade que gente de má indole com máscaras de malta porreira julga ter conquistado, não passa de medo mal disfarçado. Quem vende a alma por um euro - na mira de outros lucros - considerará oportuno e até de muito bom tom, fazer vénias, ajoelhar e deixar-se pisar, como se fosse um tapete.
De facto, certos merdosos que se julgam senhores, só porque ventos de sorte permitiram que a carteira finalmente servisse para ter dinheiro - e dinheiro que se pode gastar - para comprar muitas máscaras... também de hipocrisia! E já agora, para o disfarce ser perfeito, dá jeito também comprar manuais de boas maneiras, os mais básicos sobre diplomacia já que querem tanto aprender. Também podem disfarçar a má formação enquanto seres humanos, começando a beber chá, até porque existem chás bastante caros, permitindo também a ostentação do novo riquismo.
Pois, não falta onde gastar dinheiro. Faltará sempre boa educação, gratidão, sentido de justiça, dignidade, generosidade e respeitabilidade a sério. São qualidades que apesar do muito dinheiro, só podem exibidas com máscaras e maquilhagens... que mesmo da melhor qualidade, felizmente, não duram sempre!
Também há dias em que as almas não estão à venda...

sábado, 6 de outubro de 2007

Barco Negro


De manhã, que medo, que me achasses feia!
Acordei, tremendo, deitada n'areia
Mas logo os teus olhos disseram que não,
E o sol penetrou no meu coração.[Bis]

Vi depois, numa rocha, uma cruz,
E o teu barco negro dançava na luz
Vi teu braço acenando, entre as velas já soltas
Dizem as velhas da praia, que não voltas:
São loucas! São loucas!

Eu sei, meu amor,
Que nem chegaste a partir,
Pois tudo, em meu redor,
Me diz qu'estás sempre comigo.[Bis]

No vento que lança areia nos vidros;
Na água que canta, no fogo mortiço;
No calor do leito, nos bancos vazios;
Dentro do meu peito, estás sempre comigo.

Música: Caco Velho; Piratini
Letra: David Mourão-Ferreira

http://www.youtube.com/watch?v=GdJYzzyO7nc



Amália Rodrigues
1920/1999

Aos que acreditam no sonho

Porque acreditar, é correr (atrás do sonho), é ser um pássaro e voar mesmo quando as asas estão parcialmente cortadas, é cantar mesmo quando lhe tentam partir o bico...
Porque acreditar é também partilhar o sonho e a vida. Vale a pena! Vale sempre a pena! Porque os bons vencem para sempre... os maus só ganham meias batalhas.
Vale a pena sonhar, viver, acreditar, amar, dar, receber, aceitar, abraçar...
Talvez um dia eu consiga perdoar, quando a minha alma for maior.

Ser poeta

Ser poeta é ser mais alto, é ser maior
Do que os homens! Morder como quem beija!
É ser mendigo e dar como quem seja
Rei do Reino de Aquém e de Além Dor!

É ter de mil desejos o esplendos
E não saber sequer que se deseja!
É ter cá dentro um astro que flameja,
É ter garras e asas de condor!

É ter fome, é ter sede de Infinito!
Por elmo, as manhãs de oiro e cetim…
É condensar o mundo num só grito!

E é amar-te, assim, perdidamente…
É seres alma e sangue e vida em mim
E dizê-lo cantando a toda a gente!

(Florbela Espanca, «Charneca em Flor», in «Poesia Completa»)

Acontecimentos que valem a pena


"Era Outubro, despertei..."
Parabéns Sic

quinta-feira, 4 de outubro de 2007

As portas...

Vale a pena ler o poema de Ary dos Santos. Vale a pena reflectir. Vale a pena pensar... numa altura em que se tropeça frequentemente em atropelos à democracia. Quero continuar a acreditar que "a liberdade está a passar por aqui"

As portas que Abril abriu

Era uma vez um país
onde entre o mar e a guerra
vivia o mais infeliz
dos povos à beira-terra.
Onde entre vinhas sobredos
vales socalcos searas
serras atalhos veredas
lezírias e praias claras
um povo se debruçava
como um vime de tristeza
sobre um rio onde mirava
a sua própria pobreza.

Era uma vez um país
onde o pão era contado
onde quem tinha a raiz
tinha o fruto arrecadado
onde quem tinha o dinheiro
tinha o operário algemado
onde suava o ceifeiro
que dormia com o gado
onde tossia o mineiro
em Aljustrel ajustado
onde morria primeiro
quem nascia desgraçado.

Era uma vez um país
de tal maneira explorado
pelos consórcios fabris
pelo mando acumulado
pelas ideias nazis
pelo dinheiro estragado
pelo dobrar da cerviz
pelo trabalho amarrado
que até hoje já se diz
que nos tempos do passado
se chamava esse país
Portugal suicidado.

Ali nas vinhas sobredos
vales socalcos searas
serras atalhos veredas
lezírias e praias claras
vivia um povo tão pobre
que partia para a guerra
para encher quem estava podre
de comer a sua terra.

Um povo que era levado
para Angola nos porões
um povo que era tratado
como a arma dos patrões
um povo que era obrigado
a matar por suas mãos
sem saber que um bom soldado
nunca fere os seus irmãos.

Ora passou-se porém
que dentro de um povo escravo
alguém que lhe queria bem
um dia plantou um cravo.
Era a semente da esperança
feita de força e vontade
era ainda uma criança
mas já era a liberdade.

Era já uma promessa
era a força da razão
do coração à cabeça
da cabeça ao coração.
Quem o fez era soldado
homem novo capitão
mas também tinha a seu lado
muitos homens na prisão.

Esses que tinham lutado
a defender um irmão
esses que tinham passado
o horror da solidão
esses que tinham jurado
sobre uma côdea de pão
ver o povo libertado
do terror da opressão.

Não tinham armas é certo
mas tinham toda a razão
quando um homem morre perto
tem de haver distanciação
uma pistola guardada
nas dobras da sua opção
uma bala disparada
contra a sua própria mão
e uma força perseguida
que na escolha do mais forte
faz com que a força da vida
seja maior do que a morte.

Quem o fez era soldado
homem novo capitão
mas também tinha a seu lado
muitos homens na prisão.

Posta a semente do cravo
começou a floração
do capitão ao soldado
do soldado ao capitão.
Foi então que o povo armado
percebeu qual a razão
porque o povo despojado
lhe punha as armas na mão.

Pois também ele humilhado
em sua própria grandeza
era soldado forçado
contra a pátria portuguesa.
Era preso e exilado
e no seu próprio país
muitas vezes estrangulado
pelos generais senis.

Capitão que não comanda
não pode ficar calado
é o povo que lhe manda
ser capitão revoltado
é o povo que lhe diz
que não ceda e não hesite
– pode nascer um país
do ventre duma chaimite.
Porque a força bem empregue
contra a posição contrária
nunca oprime nem persegue
– é força revolucionária!

Foi então que Abril abriu
as portas da claridade
e a nossa gente invadiu
a sua própria cidade.
Disse a primeira palavra
na madrugada serena
um poeta que cantava
o povo é quem mais ordena.

E então por vinhas sobredos
vales socalcos searas
serras atalhos veredas
lezírias e praias claras
desceram homens sem medo
marujos soldados «páras»
que não queriam o degredo
dum povo que se separa.
E chegaram à cidade
onde os monstros se acoitavam
era a hora da verdade
para as hienas que mandavam
a hora da claridade
para os sóis que despontavam
e a hora da vontade
para os homens que lutavam.

Em idas vindas esperas
encontros esquinas e praças
não se pouparam as feras
arrancaram-se as mordaças
e o povo saiu à rua
com sete pedras na mão
e uma pedra de lua
no lugar do coração.

Dizia soldado amigo
meu camarada e irmão
este povo está contigo
nascemos do mesmo chão
trazemos a mesma chama
temos a mesma ração
dormimos na mesma cama
comendo do mesmo pão.
Camarada e meu amigo
soldadinho ou capitão
este povo está contigo
a malta dá-te razão.

Foi esta força sem tiros
de antes quebrar que torcer
esta ausência de suspiros
esta fúria de viver
este mar de vozes livres
sempre a crescer a crescer
que das espingardas fez livros
para aprendermos a ler
que dos canhões fez enxadas
para lavrarmos a terra
e das balas disparadas
apenas o fim da guerra.

Foi esta força viril
de antes quebrar que torcer
que em vinte e cinco de Abril
fez Portugal renascer.
E em Lisboa capital
dos novos mestres de Aviz
o povo de Portugal
deu o poder a quem quis.

Mesmo que tenha passado
às vezes por mãos estranhas
o poder que ali foi dado
saiu das nossas entranhas.
Saiu das vinhas sobredos
vales socalcos searas
serras atalhos veredas
lezírias e praias claras
onde um povo se curvava
como um vime de tristeza
sobre um rio onde mirava
a sua própria pobreza.

E se esse poder um dia
o quiser roubar alguém
não fica na burguesia
volta à barriga da mãe.
Volta à barriga da terra
que em boa hora o pariu
agora ninguém mais cerra
as portas que Abril abriu.

Essas portas que em Caxias
se escancararam de vez
essas janelas vazias que se encheram outra vez
e essas celas tão frias
tão cheias de sordidez
que espreitavam como espias
todo o povo português.

Agora que já floriu
a esperança na nossa terra
as portas que Abril abriu
nunca mais ninguém as cerra.

Contra tudo o que era velho
levantado como um punho
em Maio surgiu vermelho
o cravo do mês de Junho.
Quando o povo desfilou
nas ruas em procissão
de novo se processou
a própria revolução.

Mas eram olhos as balas
abraços punhais e lanças
enamoradas as alas
dos soldados e crianças.
E o grito que foi ouvido
tantas vezes repetido
dizia que o povo unido
jamais seria vencido.

Contra tudo o que era velho
levantado como um punho
em Maio surgiu vermelho
o cravo do mês de Junho.

E então operários mineiros
pescadores e ganhões
marçanos e carpinteiros
empregados dos balcões
mulheres a dias pedreiros
reformados sem pensões
dactilógrafos carteiros
e outras muitas profissões
souberam que o seu dinheiro
era presa dos patrões.

A seu lado também estavam
jornalistas que escreviam
actores que se desdobravam
cientistas que aprendiam
poetas que estrebuchavam
cantores que não se vendiam
mas enquanto estes lutavam
é certo que não sentiam
a fome com que apertavamos cintos dos que os ouviam.

Porém cantar é ternura
escrever constrói liberdade
e não há coisa mais pura
do que dizer a verdade.
E uns e outros irmanados
na mesma luta de ideais
ambos sectores explorados
ficaram partes iguais.

Entanto não descansavam
entre pragas e perjúrios
agulhas que se espetavam
silêncios boatos murmúrios
risinhos que se calavam
palácios contra tugúrios
fortunas que levantavam
promessas de maus augúrios
os que em vida se enterravam
por serem falsos e espúrios
maiorais da minoria
que diziam silenciosa
e que em silêncio fazia
a coisa mais horrorosa:
minar como um sinapismo
e com ordenados régios
o alvor do socialismo
e o fim dos privilégios.

Foi então se bem vos lembro
que sucedeu a vindima
quando pisámos Setembro
a verdade veio acima.
E foi um mosto tão forte
que sabia tanto a Abril
que nem o medo da morte
nos fez voltar ao redil.
Ali ficámos de pé
juntos soldados e povo
para mostrarmos como é
que se faz um país novo.
Ali dissemos não passa!
E a reacção não passou.
Quem já viveu a desgraça
odeia a quem desgraçou.

Foi a força do Outono
mais forte que a Primavera
que trouxe os homens sem dono
de que o povo estava à espera.

Foi a força dos mineiros
pescadores e ganhões
operários e carpinteiros
empregados dos balcões
mulheres a dias pedreiros
reformados sem pensões
dactilógrafos carteiros
e outras muitas profissões
que deu o poder cimeiro
a quem não queria patrões.

Desde esse dia em que todos
nós repartimos o pão
é que acabaram os bodos
— cumpriu-se a revolução.

Porém em quintas vivendas
palácios e palacetes
os generais com prebendas
caciques e cacetetes
os que montavam cavalos
para caçarem veados
os que davam dois estalos
na cara dos empregados
os que tinham bons amigos
no consórcio dos sabões
e coçavam os umbigos
como quem coça os galões
os generais subalternos
que aceitavam os patrões
os generais inimigos
os generais garanhões
teciam teias de aranha
e eram mais camaleões
que a lombriga que se amanha
com os próprios cagalhões.
Com generais desta apanha
já não há revoluções.

Por isso o onze de Março
foi um baile de Tartufos
uma alternância de terços
entre ricaços e bufos.
E tivemos de pagar
com o sangue de um soldado
o preço de já não estar
Portugal suicidado.
Fugiram como cobardes
e para terras de Espanha
os que faziam alardes
dos combates em campanha.

E aqui ficaram de pé
capitães de pedra e cal
os homens que na Guiné
aprenderam Portugal.
Os tais homens que sentiram
que um animal racional
opõe àqueles que o firam
consciência nacional.
Os tais homens que souberam
fazer a revolução
porque na guerra entenderam
o que era a libertação.
Os que viram claramente
e com os cinco sentidos
morrer tanta tanta gente
que todos ficaram vivos.
Os tais homens feitos de aço
temperado com a tristeza
que envolveram num abraço
toda a história portuguesa.

Essa história tão bonita
e depois tão maltratada
por quem herdou a desditada história colonizada.
Dai ao povo o que é do povo
pois o mar não tem patrões.
– Não havia estado novo
nos poemas de Camões!
Havia sim a lonjura
e uma vela desfraldada
para levar a ternura
à distância imaginada.

Foi este lado da história
que os capitães descobriram
que ficará na memória
das naus que de Abril partiram
das naves que transportaram
o nosso abraço profundo
aos povos que agora deram
novos países ao mundo.

Por saberem como é
ficaram de pedra e cal
capitães que na Guiné
descobriram Portugal.

E em sua pátria fizeram
o que deviam fazer:
ao seu povo devolveram
o que o povo tinha a haver:
Bancos seguros petróleos
que ficarão a renderao invés dos monopólios
para o trabalho crescer.
Guindastes portos navios
e outras coisas para erguer
antenas centrais e fios
dum país que vai nascer.

Mesmo que seja com frio
é preciso é aquecer
pensar que somos um rio
que vai dar onde quiser
pensar que somos um mar
que nunca mais tem fronteiras
e havemos de navegar
de muitíssimas maneiras.

No Minho com pés de linho
no Alentejo com pão
no Ribatejo com vinho
na Beira com requeijão
e trocando agora as voltas
ao vira da produção
no Alentejo bolotas
no Algarve maçapão
vindimas no Alto Douro
tomates em Azeitão
azeite da cor do ouro
que é verde ao pé do Fundão
e fica amarelo puro
nos campos do Baleizão.
Quando a terra for do povo
o povo deita-lhe a mão!
É isto a reforma agrária
em sua própria expressão:
a maneira mais primária
de que nós temos um quinhão
da semente proletáriada nossa revolução.

Quem a fez era soldado
homem novo capitão
mas também tinha a seu lado
muitos homens na prisão.

De tudo o que Abril abriu
ainda pouco se disse
um menino que sorriu
uma porta que se abrisse
um fruto que se expandiu
um pão que se repartisse
um capitão que seguiu
o que a história lhe predisse
e entre vinhas sobredos
vales socalcos searas
serras atalhos veredas
lezírias e praias claras
um povo que levantava
sobre um rio de pobreza
a bandeira em que ondulava
a sua própria grandeza!

De tudo o que Abril abriu
ainda pouco se dissee só nos faltava agora
que este Abril não se cumprisse.
Só nos faltava que os cães
viessem ferrar o dente
na carne dos capitães
que se arriscaram na frente.

Na frente de todos nós
povo soberano e total
que ao mesmo tempo é a voz
e o braço de Portugal.
Ouvi banqueiros fascistas
agiotas do lazer
latifundiários machistas
balofos verbos de encher
e outras coisas em istas
que não cabe dizer aqui
que aos capitães progressistas
o povo deu o poder!
E se esse poder um dia
o quiser roubar alguém
não fica na burguesia
volta à barriga da mãe!

Volta à barriga da terra
que em boa hora o pariu
agora ninguém mais cerra
as portas que Abril abriu!

Ary dos Santos (1975)

quarta-feira, 3 de outubro de 2007

Mudam-se os tempos, Mudam-se as vontade

Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades,
Muda-se o ser, muda-se a confiança;
Todo o mundo é composto de mudança,
Tomando sempre, tomando sempre novas qualidades.
E se todo o mundo é composto de mudança
Troquemos-lhe as voltas que ainda o dia é uma criança

Continuamente vemos novidades,
Diferentes em tudo da esperança;
Do mal ficam as mágoas na lembrança,
E do bem, e do bem, (se algum houve...) as saudades.

O tempo cobre o chão de verde manto,
Que já coberto foi de neve fria,
E em mim converte em choro o doce canto.
E em mim converte, e em mim converte em choro o doce canto.

E,afora este mudar-se cada dia,
Outra mudança faz de mor espanto:
Que não se muda já como soía
Que não se muda, que não se muda já como soía

José Mário Branco a partir de um soneto de Camões

segunda-feira, 1 de outubro de 2007

Cores de terra


Primeiro dia do mês de Outubro. Tempo ameno, céu ainda azul com nuvens pachorrentas ao sabor do vento, sol preguiçoso. As folhas das árvores mudam de cor... ficam acastanhadas, avermelhadas, até se tornarem pálidas. Cheira a terra e tudo fica cor de terra. Apetece comer castanhas assadas, quentinhas, para aquecer a alma.
Primeiro dia de Outubro, mês especial, o meu preferido. Entre o muito calor e o demasiado frio. Altura em que as árvores se despem de folhas e vergonha. Fica tudo a nu. A minha alma também. Gosto tanto do mês de Outubro.
(Foto D.R.)