segunda-feira, 9 de julho de 2007

"Cerco" de prata

O leme da traineira vai deixando um traço de espuma nas ondas, um convite para seguir viagem. O Mestre, atento à condução e aos outros aparelhos preciosos auxiliares para a descoberta do cardume, enche as narinas de ar, tem um brilhozinho nos olhos. O sol vai-se pondo pela proa e o barco segue-lhe a trilha. Os peixes também mas o cardume ainda está disperso. Não vale a pena fazer o cerco, ainda.
Uma e outra gaivota solitária sobrevoam a traineira e partem de seguida. A bordo ainda não há nada que se coma. A bombordo surge um golfinho, brincalhão. Vai saltando e vai nadando. Cada salto é como que uma vénia, um abraço aos homens do mar. Homens que por essa altura, na grande maioria, optaram por descansar. Na coberta apenas o vigia e um outro pescador que deita ao mar um artefacto próprio para apanhar lulas. Quem sabe a sorte está por ali...
A embarcação continua a seguir em direcção ao pôr do sol, devagarinho. Parece estar em bicos de pés, para não acordar os peixes do cardume que vai aumentando. Na cabine, o rosto do Mestre descontrai-se num enorme sorriso. Os olhos brilhantes olham um ponto fixo no mar, que só ele vê.
E o sol começa a descer lentamente sobre o mar. Parece uma bola de fogo, incandescente, parece querer contar histórias de paixões tórridas. A grande bola vermelha de fogo e de vida começa a mergulhar. Em redor, as águas também ficam avermelhadas, até mesmo as águas submersas. A bola de fogo continua a penetrar - lentamente - no oceano profundo como se estivesse a fazer amor, devagar, saboreando cada momento. Sente no ar um misto de ternura e brisa marinha que vem acariciar a vida e o "tap - tap" do motor da embarcação permite ouvir o marulhar das águas. Como se nesse momento descesse dos céus a bênção divina...
O golfinho brincalhão dá um salto à altura da cabine do Mestre, pisca-lhe o olho e afasta-se. Veio certificar a qualidade do cardume, que entretanto já saboreou. O sol mergulha definitivamente no mar. As águas passam do avermelhado da paixão para o azul escuro da noite, ainda sem estrelas.
A traineira segue pachorrenta, solitária, agora em direcção a um ponto que só o Mestre conhece. está quase a chegar. O vigia levanta-se, mexe-se, adivinha a acção. O outro pescador recolhe o artefacto que tinha deitado ao mar e sorri também. Enquanto não começa a faina, já tem uma bela lula, se calhar o almoço do dia seguinte. O Mestre liga todas as luzes, olha para os sonares e abre ainda mais o sorriso. Liga a sirene. É um uivo que rasga a noite a alerta as gaivotas. Os homens da "companha" também. Acorrem à coberta, aos seus postos, sem perguntas. Cada um sabe o que tem que fazer. A "chata" (espécie de bote de fundo achatado) é deitada ao mar, solta-se a rede, começa o cerco do cardume. A traineira ziguezagueia nas águas, corta as ondas, cerca o cardume que já não pode fugir.
Outras luzes rasgam a noite e um outro barulho também. É a "enviada" - embarcação de apoio - que acabou de chegar, como se tivesse surgido por debaixo das águas. As duas embarcações estão lado a lado. Na borda, os homens começam a alar as redes, com a preciosa ajuda do guincho, com suor, com dor, com amor.
Ouvem-se os gemidos sumidos dos pescadores, o vozeirão do Mestre dá ordens precisas. Separadas por escassos metros, as duas embarcações partilham uma rede de tesouros, de peixes, de sardinhas, que a lua cheia (que veio ajudar), transforma em pedaços de prata. O cansaço não inibe os sorrisos. O lance é bom. O sorriso do Mestre torna-se ainda mais rasgado, mais aberto; as rugas do rosto tornam-se também sorrisos. A prosperidade está a passar por aqui. Nos olhos do Mestre e de cada pescador há uma prece de agradecimento. Nas cabines dos dois pesqueiros, as imagens sofridas do Senhor das Chagas também, por momentos, parecem sorrir.




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